De sãos e de loucos...

De sãos e de loucos todos nós temos um pouco. Essa é a grande verdade. Para os menos atentos, no lado direito deste estaminé encontra-se uma etiqueta chamada depressão e afins. Quero com isto dizer que não é a primeira vez que falo destes assuntos, e não será a última.
Ao ler os posts da Sofia e do Pedro confrontei-me como uma realidade que me aconteceu há alguns anos atrás: o aprender a lidar com alguém bipolar.
A minha mãe é bipolar provavelmente desde sempre, e "desenvolveu" o tipo mais chato da doença, aquele que nos dá muito que fazer. Ao grau da doença acrescenta-se um feitio do caraças que dificultou muita coisa. Provavelmente o feitio e a doença sempre foram um só, uma vez que actualmente a minha mãe encontra-se estável, apesar de ter os períodos de ansiedade e de depressão, mas nada é comparado ao que já vi e já passei.
Hoje a minha mãe admite a doença, mas nunca soube quando estava a entrar numa crise de mania, porque aos olhos deles uma crise destas é qualquer coisa de bom, deve dar-lhes uma adrenalina maravilhosa pela sensação de serem deuses, de serem donos do mundo.
Não é fácil ser-se bipolar, e não é fácil lidar-se com um bipolar como a minha mãe. Digo isto, porque conheço pessoas bipolares que fazem a vida delas de forma normal, tomam a medicação e vivem um dia de cada vez, e pensam se o dia de hoje não foi bom o de amanhã será melhor. Eu levei anos para que a minha mãe encarasse a coisa desta forma, e ainda luto muito para que ela tenha esta visão.
À bipolaridade acrescentou-se uma pré-demência, que provavelmente ajudou bastante a estabilizar a doença.
Mas antes de acontecer esta espécie de "estabilização" eu lidei com:
Episódios psicóticos.
Crises de mania que não lembram a ninguém.
Tentativas de suicídio (forjadas claro está).
Ameaças à minha integridade e à das pessoas que me rodeiam.
Telefonemas para a polícia
.........
Enfim....um autêntico festival.
Cheguei a ouvir coisas como:
"Vou-me matar, mas não sei quando."
"Eu mato-te, eu parto-te toda."
"Eu faço o que quero e não tenho que dar satisfações."
"Eu não vou tomar estes medicamentos."
"Eu não sou doente."
"Eu sou muito doente e não sei o que sou capaz de vos fazer."


A minha mãe teve um episódio psicótico que levou a que eu tivesse medo de dormir, porque tinha receio que ela me fizesse alguma coisa, isto porque a minha mãe nessa altura para além de andar com fervor católico exacerbado (o padre só ajudava à festa e dizia algo como "continue a rezar"), ela via luzinhas, santinhos e sim o diabo atrás de mim que dizia que eu era má, e por ai adiante.
Eu cheguei muitas vezes a vir de Tomar para casa em vésperas de exames porque a minha mãe estava em crise.
O que eu aprendi com isto? Aprendi a tratar de mim, mas também aprendi a lidar com um lado muito mau que os doentes mentais têm: o lado da chantagem emocional. Aprendi a não cair mais na história "do eu mato-me", e a dizer "então quando tomares os comprimidos avisa, para irmos ao hospital", ou a ameaçar verdadeiramente com avisos para a GNR e telefonemas para os bombeiros quando via que eu ou a minha avó e mesmo a minha mãe estávamos com a nossa integridade física ameaçada. E se fiz isso? Fiz, e farei novamente se for necessário.


O que eu quero dizer é que não é fácil para ninguém, mas infelizmente nenhum de nós consegue entrar na cabeça de um doente mental, seja ele bipolar, esquizofrénico, psicótico, múltiplas personalidades, distúrbios de personalidade, e todos os nomes lindos que para ai andam, e mostrar que a estabilização e o tratamento não são só efectuados pelo tratamento mas pela vontade que a pessoa tem. 


O primeiro passo para a estabilização de um doente mental, infelizmente não é nosso. Tem que ser dele. Tem que ser o doente a admitir que algo está mal "no convento", consciencializar-se disso, fazer a medicação e aprender ele mesmo a lidar com o problema. Família, amigos e terapias são importantes, mas de nada serve se a pessoa não tiver a real noção do que tem, e se não quiser tratar-se seja por medicação, seja por internamentos.
Muitos destes doentes gostam da adrenalina que estes problemas dão. Vivem a vida e os dias de uma forma demasiado "irreverente", fazem a máxima do viver cada dia como se fosse o último, magoam outras pessoas e principalmente magoam-se a eles mesmos, perdem a noção dos limites, quase que vivem numa realidade que não é mesma que a nossa. Querem este mundo e outro, a vida deles pode ser uma completa anarquia, tomam como deles o que é nosso.
Por vezes têm um ego e auto-estima demasiado elevados que ambicionam tudo e tudo fazem para serem o centro das atenções, para terem o mundo ao seu redor.


O que acontece é que muitos deles só tomam consciência do que se passa sendo já bastante tarde, tendo já batido no fundo do poço e não são capazes de sair de lá. Aí não há volta a dar, temos que esperar que ele admita o problema e que se quer tratar.
Quanto a nós, temos que ser compreensivos, mas também realistas.
Eu pessoalmente não faço a apologia do coitadinho que não joga com o baralho todo. Nada disso. É doente mental mas pode e deve viver em sociedade, pode e deve tratar-se e saber como lidar com a doença. Deve seguir uma medicação rigorosa e não misturá-la (eu chamo trocar cromos, era o que a minha mãe fazia).
Eu compreendo e respeito quem é doente mental, convivo com uma, e provavelmente trago o gene e quero muito que ele esteja aqui sossegado e a dormir, porque já é suficiente o meu Cipralex, e as consultas semestrais no psiquiatra.
 A diferença é que por ter tantos anos de "experiência" no assunto (vivo com a situação desde que me lembro de ser gente), não acredito em coitadinhos, não acredito em pessoas que usam a doença para terem benefícios, para serem uns coitados e fazerem de nós que fazemos de tudo para sermos sãos quase uns joguetes nas suas mãos.


Parece-vos um retrato demasiado duro este???
É a realidade de muitas pessoas, apesar de ser escondida. 
Infelizmente vivemos numa sociedade em que um doente mental ou é estigmatizado, ou dado como inapto para trabalhar, ou porque é moda ter-se uma depressão e estar de baixa médica por esses motivos, tal como é bom para muitos ter-se uma doença mental e usá-la para proveito próprio. 

Comentários

  1. Parece-me sim, um relato muito duro. Já tive que lidar com problemas mentais de elementos da minha familia, mas nunca assim. Continuo a admirar a tua foça minha Inêzita.

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  2. Lido com eles na minha profissão claro...
    E apesar de apaixonante, é sempre um enigma.
    Mas lidar com essas pessoas num contexto familiar, nunca o fiz, e admiro-te por isso... pela forma como o encaras.
    Pelo carinho e pelo tanto de ti que dás a tua mãe.
    porque apesar deste relato duro Inêsita mostras o quanto a amas.
    E o tanto que dás de ti mesma.
    beijo

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  3. Vera: o relato é mesmo realista e infelizmente é duro.
    E se a vida fosse fácil andavam cá outros. Com o caso da minha mãe aprendi a ser dura, forte, a rir, a chorar, a dar mimos, a ralhar, a entrar na psiquiatria de cabeça erguida. Não me serve de nada baixar a cabeça e parar de lutar por ela e por mim.

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  4. Petra: acredito bem que não é fácil lidar com doentes mentais na tua profissão. Tens que ter estaleca, e conseguir deixar o trabalho no trabalho e não o levares para casa.
    O meu "trabalho" é estar atenta, é tentar levar as coisas da forma mais leve possível, é ver um eventual internamento como mais um a juntar à lista.
    E aprendi muito com isto: aprendi a tratar de mim e a ter cuidado comigo.

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