O que posso dizer de Kafka à beira-mar

Se esperam um livro fácil, este é oposto. É o livro mais alucinante e complexo que li até hoje. É um livro que me exigiu concentração e querer compreender todo o simbolismo por detrás de duas histórias que se interligam e transformam numa. Desde o próprio Kafka com dúvidas existenciais que vão bem além dos seus 15 anos e atormentado com a maldição do complexo de Édipo, passando por Nakata, um velho perdeu a memória e as suas capacidades quando criança, mas que tem o dom de falar com gatos. A estes juntam-se o alter ego de Kafka (o rapaz chamado Corvo) e Oshino e Oshima, que para mim funcionam como "consciências". Pelo meio encontram-se diálogos com gatos, a figura de Johnny Walker, do Coronel Sanders e uma prostituta que cita Hegel. E assim temos uma autêntica viagem ao interior de nós mesmos, a nossa passagem pela tempestade, o enfrentar os nossos medos.
Se fizerem a pesquisa por opiniões sobre o livro, muito provavelmente vão encontrar diversas conclusões, umas semelhantes, outras nem tanto.

A minha opinião é que Kafka à beira-mar e toda a simbologia nos leva a viajar pelo nosso interior, pelos nossos medos. Fazemos uma viagem ao nosso Eu, aos nossos Eus. Murakimi quis com este livro explicar que todos somos um. Basicamente que todos temos dentro de nós vários eus, que vão ganhando protagonismo conforme o nosso "estado de espírito". Na minha opinião, Murakami quis também explicar que ao entendermos os nossos Eus e lutarmos contra os nossos demónios, os nossos medos (a analogia com a tempestade de areia), tudo fica mais fácil.

Kfaka à beira-mar está cheio de frases que nos deixam a pensar. Destaco estes excertos que explicam muito da minha compreensão sobre o livro:

(...)
Por vezes o destino é como uma pequena tempestade de areia que não pára de mudar de direcção. Tu mudas de rumo, mas a tempestade de areia vai atrás de ti. Voltas a mudar de direcção, mas a tempestade persegue-te, seguindo no teu encalço. Isto acontece uma vez e outra e outra, como uma espécie de dança maldita com a morte ao amanhecer. Porquê? Porque esta tempestade não é uma coisa que tenha surgido do nada, sem nada que ver contigo. Esta tempestade és tu. Algo que está dentro de ti. Por isso, só te resta deixares-te levar, mergulhar na tempestade, fechando os olhos e tapando os ouvidos para não deixar entrar a areia e, passo a passo, atravessá-la de uma ponta a outra. Aqui não há lugar para o sol nem para a lua; a orientação e a noção de tempo são coisas que não fazem sentido. Existe apenas areia branca e fina, como ossos pulverizados, a rodopiar em direcção ao céu. É uma tempestade de areia assim que deves imaginar.
(...)
E não há maneira de escapar à violência da tempestade, a essa tempestade metafísica, simbólica. Não te iludas: por mais metafísica e simbólica que seja, rasgar-te-á a carne como mil navalhas de barba. O sangue de muita gente correrá, e o teu juntamente com ele. Um sangue vermelho, quente. Ficarás com as mãos cheias de sangue, do teu sangue e do sangue dos outros.
E quando a tempestade tiver passado, mal te lembrarás de ter conseguido atravessá-la, de ter conseguido sobreviver. Nem sequer terás a certeza de a tormenta ter realmente chegado ao fim. Mas uma coisa é certa. Quando saíres da tempestade já não serás a mesma pessoa. Só assim as tempestades fazem sentido.
págs 9-10
(...)
Sou livre. Fecho os olhos e penso com toda a minha força na minha nova condição, ainda que não esteja bem certo do que significa. Tudo o que sei é que estou completamente sozinho. Desterrado numa terra desconhecida, como um explorador solitário sem bússola nem mapa. Será isto a liberdade? Não sei, confesso, e às tantas desisto de pensar nisso.
pág 67
(...)
Sentes o peso do tempo como um velho sonho ambíguo. Continuas sempre em movimento, tentando arranjar maneira de te esquivares. Porém, mesmo que vás até aos confins do mundo não lograrás escapar-lhe. Mesmo assim, não tens outro remédio senão seguir sempre em frente, até esse fim do mundo. Há algo que não se consegue fazer, sem lá chegar.
(...)
«É melhor dormires um bocadinho», diz-me o rapaz chamado Corvo. «Quando acordares, já farás parte de um mundo novo em folha.
Às tantas, acabas por adormecer. E, quando acordas, tornou-se realidade.
Fazes parte de um mundo novo.
págs 587-588





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